O CONTEXTO ESCOLAR DO ALUNO SURDO E O PAPEL DAS LÍNGUAS Ronice Müller de Quadrosi[i]
Ao longo da história da educação de surdos no Brasil sempre houve uma preocupação exacerbada com o desenvolvimento da linguagem. As propostas pedagógicas sempre foram calcadas na questão da linguagem. Essa preocupação com a questão da linguagem, não menos importante que quaisquer outras na área da educação, tornou-se quase que exclusiva, perdendo-se de vista o processo educacional integral da criança surda.
Há várias razões para tal fato, dentre elas, o fato das crianças serem surdas tornava fundamental a discussão sobre o processo de aquisição da linguagem, tendo em vista que tal processo era traduzido por línguas oraisauditivas. As crianças surdas dotadas das capacidades mentais precisavam recuperar o desenvolvimento da linguagem e por essa razão, até os dias de hoje, há pesquisas que procuram um meio de garantir o desenvolvimento da linguagem em crianças surdas através de métodos de oralização. “Fazer o surdo falar e ler os lábios permitirá o acesso a linguagem”, frase repetida ao longo da história e que tem garantido o desenvolvimento de técnicas e metodologia que favoreçam esse processo, há muitos anos, com alguns avanços.
Entretanto, apesar de todo esse empenho, os resultados que advém de tal esforço são drásticos. A maior parte dos adultos surdos brasileiros demonstram o fracasso das inúmeras tentativas de se garantir linguagem através da língua oralauditiva do país, a língua portuguesa. Todos os profissionais envolvidos na educação de surdos que conhecem surdos adultos admitem o fracasso do ensino da língua portuguesa, não somente enquanto língua usada para a expressão escrita, mas, principalmente, enquanto língua que permite o desenvolvimento da linguagem.
Muitos desses adultos surdos buscam inconscientemente “salvar” o seu processo de aquisição da linguagem através da língua brasileira de sinais - LIBRAS. A raça humana privilegia tanto a questão da linguagem, isto é, a linguagem é tão essencial para o ser humano que, apesar de todos os empecilhos que possam surgir para o estabelecimento de relações através dela, os seres humanos buscam formas de satisfazer tal natureza. Os adolescentes, os adultos surdos, logo quando se tornam mais independentes da escola e da família, buscam relações com outros surdos através da língua de sinais. No Brasil, as associações de surdos brasileiras foram sendo criadas e tornando-se espaço de “bate-papo” e lazer em sinais para os surdos, enquanto as escolas especiais “oralizavam” ou as escolas “integravam” crianças surdas nas escolas regulares de ensino. Percebe-se, aqui, um movimento de resistência natural por parte dos surdos a um processo social, político e lingüístico que privilegiou o parâmetro do normal.
As pesquisas sobre a aquisição da linguagem avançaram muito a partir dos anos 60. Os estudos envolvendo a análise do processo de aquisição de várias crianças começaram a indicar a universalidade desse processo (Fletcher & Garman, 1986; Ingram, 1989; Slobin, 1986). O estudo da Língua de Sinais Americana - ASL - começou exatamente neste mesmo período através de uma descrição realizada por Willian Stokoe, publicada em 1965 pela primeira vez (Stokoe et alli, 1976). Esse trabalho representou uma revolução social e lingüística. A partir dessa obra, várias outras pesquisas foram publicadas apresentando perspectivas completamente diferentes do estatuto das línguas de sinais (Bellugi & Klima, 1972; Siple, 1978; Lillo-Martin, 1986) culminando no seu reconhecimento lingüístico nas investigações da Teoria da Gramática com Chomsky (1995:434, nota 4) ao observar que o termo “articulatório” não se restringe a modalidade das línguas faladas, mas expressa uma forma geral da linguagem ser representada no nível de interface articulatório-perceptual incluindo, portanto, as línguas sinalizadas.
Quase que em paralelo a esses estudos, iniciaram-se as pesquisas sobre o processo de aquisição da linguagem em crianças surdas filhas de pais surdos
(Meier, 1980; Loew, 1984; Lillo-Martin, 1986; Petitto, 1987). Essas crianças apresentam o privilégio de terem acesso a uma língua de sinais em iguais condições ao acesso que as crianças ouvintes têm a uma língua oral-auditiva1[1] .
No Brasil, a LIBRAS começou a ser investigada na década de 80 (Ferreira-Brito,
Todos esses estudos concluíram que o processo das crianças surdas adquirindo língua de sinais ocorre em período análogo à aquisição da linguagem em crianças adquirindo uma língua oral-auditiva. Assim sendo, mais uma vez, os estudos de aquisição da linguagem indicam universais lingüísticos. O fato do processo ser concretizado através de línguas visuais-espaciais, garantindo que a faculdade da linguagem se desenvolva em crianças surdas, exige uma mudança nas formas como esse processo vem sendo tratado na educação de surdos.
A aquisição da linguagem em crianças surdas deve ser garantida através de uma língua visual-espacial. No caso do Brasil, através da LIBRAS. Isso independe de propostas pedagógicas (desenvolvimento da cidadania, alfabetização, aquisição do português, aquisição de conhecimentos, etc.), pois é algo que deve ser pressuposto. Diante do fato das crianças surdas virem para a escola sem adquirirem uma língua, a escola precisa estar atenta a programas que garantam o acesso à LIBRAS. O processo educacional ocorre mediante interação lingüística e deve ocorrer, portanto, na LIBRAS. Se a criança chega na escola sem linguagem, é fundamental que o trabalho seja direcionado para a retomada do processo de aquisição da linguagem através de uma língua visual-espacial3[3] . A aquisição da LIBRAS por crianças surdas brasileiras é algo inquestionável. No entanto, a educação de surdos continua apresentando inúmeros problemas mesmo quando as crianças têm acesso à língua de sinais. No Brasil, essa constatação é comparável a situação das crianças ouvintes que vão para escola
1[1] Privilégio porque representam apenas 5% das crianças surdas, ou seja, 95% das crianças surdas são filhas de pais ouvintes e que, portanto, na maioria dos casos, não dominam uma língua de sinais. 2[2] Para mais detalhes sobre a aquisição da linguagem por crianças surdas através da ASL e da LIBRAS ver Quadros (1997). 3[3] Neste caso, poder-se-ia redefinir o papel do fonoaudiólogo nas instituições que atendem surdos. Não mais como àquele que tem a função de trabalhar com a oralização, mas como àquele que trabalhará com a linguagem e seus distúrbios gerados pelo fato das crianças terem acesso a LIBRAS tardiamente e , também, com os distúrbios de linguagem comuns às crianças que adquirem uma língua falada só que em sinais (na linha da lingüística clínica, mas com uma língua visual-espacial).
com a aquisição da linguagem garantida através do português e, no entanto, os índices de repetência e evasão escolar são dos mais altos do mundo. As propostas pedagógicas devem ir além das línguas envolvidas no processo educacional.
A tradição na educação de surdos de se pensar somente na linguagem todo o tempo precisa acabar. A escola deve se constituir não em função das línguas que permeiam a vida escolar dos surdos, mas para muito além disso, ou seja, cumprir com seu papel enquanto instituição educacional.
Partindo das questões abordadas até o presente, quando se reflete sobre a língua que a criança surda usa, a LIBRAS, e o contexto escolar, imediatamente pensa-se em alfabetização.
O processo de alfabetização é essencialmente natural. As crianças passam pelos diferentes níveis desse processo mediante interação com a escrita construindo hipóteses e estabelecendo relações de significação que parecem ser comuns a todas as crianças.
Obviamente esse mesmo processo deve acontecer com as crianças surdas. Entretanto, as crianças surdas devem estabelecer visualmente relações de significação com a escrita. Assim sendo, toda a energia dos alfabetizadores de surdos é canalizada para a autonomia da escrita, mas nos níveis propostos por Ferreiro e Teberosky (1985), ou seja, níveis propostos com base em sistemas escritos alfabéticos. Interessantemente, tais níveis estão descritos como présilábico, silábico, silábico-alfabético e alfabético (com suas respectivas subdivisões). Inquestionavelmente, esse trabalho representa um avanço nos estudos sobre a alfabetização. No caso específico da alfabetização de surdos, vários professores tentaram visualizar esse mesmo processo4[4] . Apesar de todos esses esforços parece haver um “buraco-negro” no processo de alfabetização de
4[4] São raros os registros dessas tentativas, alguns registros constam nos Anais do I Encontro de Alfabetizadores de Deficientes Auditivos - INES - MEC - Rio de Janeiro, (1989).
crianças surdas. Os professores fazem alguns relatos: “As crianças chegam em um determinado nível e trancam”, “As crianças não conseguem sair da representação da palavra”, “Não consigo fazer com que eles escrevam um texto”, “Eles conseguem escrever somente as palavras trabalhadas em aula”, e assim por diante.
Ferreiro & Teberosky (1985) usaram a nomenclatura mencionada acima para identificar o processo de alfabetização alfabético em que as crianças estabelecem relação de significação entre o que é dito e o que é escrito, embora haja autonomia da escrita. O nível silábico envolve a compreensão da criança de que as diferenças das representações escritas estão relacionadas com as diferenças nas representações sonoras. Sonoras que para os surdos devem ser visuais. Apela-se então para a leitura labial que, ocuparia o lugar das representações sonoras. No entanto, apresenta-se a seguinte constatação:
Pesquisas desenvolvidas nos Estados Unidos (Duffy, 1987) constataram que, apesar do investimento de anos da vida de uma criança surda na sua oralização, ela somente é capaz de captar, através da leitura labial, cerca de 20% da mensagem e, além disso, sua produção oral, normalmente, não é compreendida por pessoas que não convivem com ela (pessoas que não estão habituadas a escutar a pessoa surda). (Quadros, 1997:23)
O primeiro problema que deve ser reconhecido é que a escrita alfabética da língua portuguesa no Brasil não serve para representar significação com conceitos elaborados na LIBRAS, uma língua visual espacial. Um grafema, uma sílaba, uma palavra escrita no português não apresenta nenhuma analogia com um fonema, uma sílaba e uma palavra na LIBRAS, mas sim com o português falado. A língua portuguesa não é a língua natural da criança surda. Já foi abordado no presente trabalho que a língua em que o processo de aquisição da linguagem ocorre naturalmente em crianças surdas brasileiras é a LIBRAS.
As línguas de sinais apresentam uma escrita que foi desenvolvida para representar formas e movimentos num espaço definido. No Brasil, esse sistema escrito está sendo aplicado a LIBRAS e usado por alguns surdos a partir de um projeto de pesquisa que está sendo desenvolvido na PUCRS5[5] .
Da mesma forma que há alguns anos, os estudos das línguas de sinais revolucionaram a visão quanto à aquisição da linguagem por crianças surdas, o reconhecimento de que as línguas de sinais não são línguas ágrafas transforma a visão do processo de alfabetização dessas crianças.
Todos os níveis do processo de alfabetização devem aparecer em crianças surdas alfabetizando-se mediante interação com a escrita da língua de sinais, ou seja, com grafemas, com sílabas e com palavras que representam diretamente a LIBRAS.
Para que seja melhor visualizada essa representação escrita da língua de sinais, será escrito um parágrafo em sinais com a tradução para o português logo a seguir.
5[5] Prof. Dr. Antônio Carlos Rocha da Costa - Instituto de Informática da PUCRS - junto com uma equipe que inclui surdos universitários e pesquisadores da área de informática, lingüística e educação, estão buscando divulgar a existência deste sistema e sua possível utilização como meio de registro da LIBRAS. Para uma visualização desse sistema ver na Internet: w.signwriting.org
Há dois grupos, aqueles que aprendem a falar e aqueles que aprendem a língua de sinais. Esses últimos desenvolvem a habilidade espacial no cérebro de forma mais sofisticada do que o outro. A possibilidade de ter um desenvolvimento mais natural do espaço pode favorecer o processo educacional da criança surda. A escrita da língua de sinais é uma forma de aproveitar o potencial dos surdos. A representação da língua de sinais através da escrita permite um processo de aprendizagem da leitura e escrita natural. As crianças estabelecem relações diretas da língua de sinais para a escrita. Por que é tão complicada a alfabetização das crianças surdas? Até o presente, as crianças surdas só tiveram contato com a escrita do português. Essa forma escrita está relacionada com a língua oral auditiva e não com uma língua visual espacial.
Um estudo sobre o desenvolvimento da escrita em crianças israelenses pré-escolares (Tolchinsky & Levin, 1987) constatou que a produção escrita das crianças apresenta uma ordem que parece corresponder a uma seqüência evolutiva, válida para diferentes formas escritas e culturas. As autoras desse trabalho consideraram as análises de Ferreiro & Teberosky para chegar a essa conclusão. O sistema escrito do hebraico apresenta algumas características peculiares que o diferencia de sistemas alfabéticos. Tal sistema conecta unidades que aparecem em cadeias curtas (não mais que cinco unidades são usadas para formar uma palavra) e sua direção é da direita para a esquerda.
Da mesma forma que com o hebraico escrito, apresenta-se a hipótese de que o processo de alfabetização em crianças surdas através do sistema escrito da língua de sinais ocorre em uma seqüência evolutiva. A escrita da língua de sinais é formada por unidades que correspondem às configurações de mão, os movimentos e as expressões faciais gramaticais em diferentes pontos de articulação que formam palavras mediante algumas combinações. Apesar de ser um sistema escrito diferente e refletir um sistema lingüístico espacial, a seqüência evolutiva de sua aquisição deve ocorrer da mesma forma6[6] .
Um trabalho realizado por O’Grady, vanHoek e Bellugi (1990) sobre a interseção entre a escrita, os sinais e o alfabeto manual verificou que a escrita das crianças surdas, por volta dos três anos, apresentava a forma do sinal
6[6] As pesquisas sobre o processo de alfabetização de crianças surdas sendo alfabetizadas na escrita da língua de sinais são urgentes para que se traga evidências desse processo e se ofereça subsídios para que isso seja reconhecido e executado em todo país.
correspondente na ASL. As respostas evidenciaram que crianças surdas conectam a língua escrita com sua língua nativa, a ASL. Fok, vanHoek, Klima & Bellugi (1991) apresentam um exemplo dessa relação com os sinais através da figura (1).
FIGURA 1: Representação escrita das crianças com base nos princípios da ASL
(Fok, vanHoek, Klima & Bellugi, 1991:140)
O sinal para PATO é o mesmo na LIBRAS. A representação escrita respectiva é a seguinte: (a) PATO
As primeiras tentativas das crianças que adquiriram a ASL foi de representar através de símbolos as palavras na ASL. Ao observar-se o sistema escrito da ASL, percebe-se que há aspectos relacionados a ASL. Isso é claramente observado em (a) onde o sinal ao lado da produção escrita é semelhante a sua representação escrita (neste exemplo, há uma relação com a configuração da mão usada no sinal para PATO).
Outros exemplos de conexão entre os sinais e a representação escrita de crianças surdas estão diretamente relacionados com a configuração de mão usada nos sinais que são também letras do alfabeto manual. Fok, vanHoek, Klima & Bellugi observaram que as crianças explicavam que a palavra INDIAN iniciava com F porque o sinal para INDIAN na ASL usa a configuração de mão F (do alfabeto manual da ASL). É interessante observar que essas crianças não tiveram acesso ao sistema escrito da ASL.
Quando assessorava uma escola de surdos no interior do RS, tive a oportunidade de observar que uma criança representava a letra ‘r’ usando o seguinte símbolo: (b) (b)
Essa criança está fazendo uma relação direta com a configuração de mão
R. A representação escrita dessa configuração na LIBRAS é a seguinte: (c)
Não somente no nível da palavra, mas também no nível da estrutura da língua acontece a relação entre a língua de sinais e a sua escrita. Fok, vanHoek, Klima & Bellugi observaram exemplos da produção escrita de crianças surdas chinesas que indicam a estruturação da língua de sinais chinesa. A figura (2a) apresenta a figura de uma ‘porta’ e (2b) a figura de uma ‘menina abrindo uma porta’. Uma criança surda escreveu corretamente a palavra ‘porta’ no chinês, no entanto na segunda figura associou o radical para pessoa do chinês a palavra ‘porta’, produzindo uma forma composta usada na língua de sinais. Na figura (3) aparecem alguns exemplos em que as crianças chinesas inventaram uma forma escrita para cada desenho apresentado. As representações escritas refletem os princípios de formação das palavras das línguas de sinais, por exemplo, uso da forma, tamanho e quantidade para formação da palavra.
“quatro” “quadrado” “forma” | “quatro” “longo” “forma” |
“redondo” “forma” (Fok, vanHoek, Klima & Bellugi, 1991:141)
A escrita da língua de sinais capta as relações que a criança estabelece naturalmente com a língua de sinais. Se as crianças tivessem acesso a essa forma escrita para construir suas hipóteses a respeito da escrita, a alfabetização seria uma conseqüência do processo.
Considera-se aqui que a alfabetização e a aquisição de uma segunda língua envolvam processos diferentes, principalmente quando se trata de línguas de modalidades diferentes. Qualquer estudo sobre a aquisição da leitura e escrita em uma L2 pressupõe que os alunos estejam alfabetizados na forma escrita da L1. Portanto, somente após as crianças surdas estarem alfabetizadas na escrita da LIBRAS, sugere-se iniciar a aquisição formal da língua portuguesa, nesse caso, a segunda língua das crianças.
AQUISIÇÃO DE L2
Até o momento a aquisição do português escrito por crianças surdas foi baseada no ensino do português para crianças ouvintes que adquirem o português falado naturalmente. Esse fato fica claro, quando se percebe que o que de fato ocorre é que a criança surda é colocada em contato com a escrita do português para ser alfabetizada em português. Várias tentativas de alfabetizar a criança surda através do português já foram realizadas, desde a utilização de métodos artificiais de estruturação de linguagem até o uso do português sinalizado7[7] .
Apesar de todas essas tentativas, evidencia-se o fracasso da aquisição do português por alunos surdos8[8] .
A partir dos vários estudos sobre o estatuto de diferentes línguas de sinais e seu processo de aquisição, muitos autores passaram a investigar o processo de aquisição por alunos surdos de uma língua escrita que representa a modalidade oral-auditiva (Andersson, 1994; Ahlgren, 1994; Ferreira-Brito, 1993; Berent, 1996; Quadros, 1997; entre outros). A aquisição do sueco, do inglês, do espanhol, do português por alunos surdos é analisada como a aquisição de uma segunda língua. Esses educadores e pesquisadores pressupõem a aquisição da língua de sinais como aquisição da L1 e propõem a aquisição da escrita da língua oral-auditiva como aquisição de uma L2.
Desconhecendo ou ignorando a representação escrita das línguas de sinais, os precursores dessa discussão acenaram a possibilidade de alfabetizar surdos na escrita da língua oral-auditiva considerando tal sistema suficientemente autônomo para tornar possível a alfabetização visual (Ferreira-Brito, 1993).
No Brasil, os métodos artificiais de estruturação de linguagem mais difundidos são a Chave de Fitzgerald e o de Perdoncini. Português sinalizado é um sistema artificial adotado por escolas especiais para surdos. Tal sistema toma sinais da LIBRAS e joga-os na estrutura do português. Há vários problemas com esse sistema no processo educacional de surdos, pois além de desconsiderar a complexidade lingüística da LIBRAS, é utilizado como um meio de ensino do português. Para mais detalhes ver Quadros (1997). 8[8] Para mais detalhes sobre a produção escrita do português de alunos surdos ver Fernandes (1990) e Göes (1996).
entanto, observa-se que esse processo não está acontecendo naturalmente. Alfabetizadores percebem que quando a criança surda atinge o nível silábico de sua produção escrita, ela se apóia na leitura labial da palavra. Esse processo acontece até a criança precisar passar do nível da palavra para o nível textual, nível em que os problemas com o português escrito permanecem tendo em vista a limitação da leitura labial. Fato esse constado por Nobre (1996): os alunos surdos não apresentam maiores problemas ortográficos. Parece que a criança surda não ultrapassa a interface do léxico com a sintaxe no português, isto é, do nível da palavra para o nível da estrutura dessa língua.
O processo de aquisição de L2 pressupõe a natureza da faculdade humana para a linguagem. As pesquisas de Berent (1996) apresentam alguns mecanismos de aquisição do inglês que são acionados por alunos surdos no seu processo de aprendizagem. Tais mecanismos refletem os princípios da Gramática Universal (Chomsky, 1995). Partindo disso, ao se pensar especificamente sobre a aquisição da L2 por alunos surdos apresentam-se alguns aspectos fundamentais: (a) o processamento cognitivo espacial especializado dos surdos; (b) o potencial das relações visuais estabelecidas pelos surdos; (c) a possibilidade de transferência da LIBRAS para o português; (d) as diferenças nas modalidades das línguas no processo educacional; (e) as diferenças dos papéis sociais e acadêmicos cumpridos por cada língua, (f) as diferenças entre as relações que a comunidade surda estabelece com a escrita tendo em vista sua cultura; (g) um sistema de escrita alfabética diferente do sistema de escrita das línguas de sinais; e (h) a existência do alfabeto manual que representa uma relação visual com as letras usadas na escrita do português.
Além desses aspectos, os estudos sobre a aquisição de L2 apresentam questões externas que devem ser consideradas, pois podem determinar o processo de ensino de línguas, são elas: o ambiente, o tipo de interação (input, output e feedback), a idade, as estratégias e estilos de aprendizagem, os fatores emocionais, os fatores sociais e o interesse (motivação) dos alunos.
O ambiente do ensino da língua portuguesa - L2 - para surdos, por envolver o ambiente escolar e o ensino de língua, caracteriza um ambiente não natural de língua. Pensando na realidade dos surdos brasileiros, poder-se-ia supor que o ambiente fosse caracterizado como natural, pois quase todas as pessoas com quem eles convivem usam a língua portuguesa, isto é, os surdos estão “imersos” no ambiente em que a língua é “falada”. No entanto, a condição física das pessoas surdas não lhes permite o acesso à língua portuguesa de forma natural. Na verdade, nestes casos não há “imersão”, no sentido em que o termo é empregado nas propostas de aquisição de L2 com base no enfoque natural (programas de imersão). Portanto, o ambiente de aquisição/ aprendizagem da L2 para os surdos é não natural9[9] .
Quanto ao tipo de interação, oferecer ao aluno surdo um input qualitativamente compreensível, autêntico e diversificado do português é um desafio para os professores. Um input compreensível, mas ao mesmo tempo complexo o suficiente para desafiar o aluno a desenvolver seu processo de aquisição, exige que discussões prévias sobre o assunto abordado em língua de sinais sejam promovidas. Além de ser compreensível, o input deve ser autêntico e diversificado, ou seja, os alunos precisam estar diante de verdadeiros textos (muitos profissionais simplificam textos tornando-os não autênticos) e com tipologia diferenciadas.
A ordem natural de aquisição deve ser um dos critérios a ser observados ao ser oferecido o input ao aluno. Como a aquisição de L2 também reflete a capacidade para linguagem específica do ser humano, há uma certa ordem no seu processo de aquisição. Outro aspecto abordado sobre o input é a quantidade em que ele é oferecido ao aluno. Considerando que o input da L2 é basicamente visual para os surdos, é imprescindível ampliar o tempo depreendido para o contato com a L2. O aluno deve ter oportunidade de interagir com o português escrito de várias formas e em todos os momentos em que for propício. Os textos, as palavras, as estórias escritas em português devem ser oferecidas visualmente desde o princípio da escolarização, mesmo não sendo alvo da alfabetização. Assim, a criança tem um input natural do português escrito.
9[9] Aquisição/aprendizagem está relacionado com o equilíbrio entre conhecimento implícito e explícito no processo de ensino de línguas (para mais detalhes ver Ellis, 1993; Quadros, 1997).
Ainda quanto ao tipo de interação, o professor deve estar atento às oportunidades que o aluno dispõe para expressar sua L2 (output). No caso específico de alunos surdos, oportunizar a eles a expressão escrita é fundamental para que o aluno avalie o seu desenvolvimento e o professor interfira no processo de aquisição através de meios cabíveis (análise de “erros”, análise da interferência da LIBRAS, análise da estrutura do português). Ao analisar as produções de alunos surdos, parece ser possível inferir que o processo de alfabetização das pessoas surdas independe do processo de ensino do português. O output (produção) escrito dos alunos expressa idéias que apresentam uma relação direta com a LIBRAS. O processo de ensino do português ocorrerá em uma etapa seguinte. A intervenção do professor representa o feedback para o aluno surdo possibilitando a reflexão sobre as hipóteses que criou na sua produção (output).
A idade dos alunos vai implicar o uso de procedimentos diferentes no processo de ensino de L2. As crianças precisam de atividades que atendam aos seus interesses imediatos de forma mais natural possível. A língua escrita, por si só, apresenta características que se distanciam de relações comunicativas imediatas. Cabe aos profissionais tornarem esse processo interessante à criança inserindo-o em uma prática social. Normalmente, o ensino de L2 para crianças enfatiza a aquisição do vocabulário e a compreensão da L2. Os adultos, diferentemente das crianças, apresentam-se motivados conscientemente para o processo de aquisição da L2, assim se dispõem a falsear ambientes naturais de língua. Já com as crianças, o processo exige do professor habilidade para tornar a aquisição o mais autêntica possível e para criar motivação suficiente para despertar o interesse do aluno.
Quanto aos estilos e às estratégias de aprendizagem (Nunan, 1991; Ellis, 1993), sugere-se que o professor faça o levantamento das tendências e das preferências dos alunos. As classes de crianças surdas normalmente são formadas por grupos em número reduzido (5 a 10 alunos); dessa forma, torna-se possível traçar um perfil. Conhecer os estilos e estratégias de cada aluno certamente repercutirá na qualidade da intervenção do professor no processo de ensino de L2.
Os fatores afetivos podem influenciar no desenvolvimento do aluno diante da L2. As crianças, por estarem formando sua auto-imagem, podem se sentir inibidas e os adultos, por serem críticos, podem bloquear o processo. Com os alunos surdos não é diferente; entretanto, além desses fatores, há outros que podem dificultar ainda mais a aquisição de L2. As crianças surdas podem estar sofrendo toda a pressão emocional familiar em função da surdez e os adultos podem manifestar resistências em relação a L2 decorrentes de constantes fracassos e frustrações gerados por um ensino inadequado. Os profissionais devem atentar a essas questões e procurar resolvê-las, pois estas afetam o processo. Tendo em vista a relação afetiva entre os pais e a criança, o trabalho com os pais, paralelo e conjuntamente com as atividades das crianças, deve fazer parte dos programas escolares. Já o trabalho com os adultos envolve um processo mais consciente; desta forma, os alunos e os profissionais devem refletir sobre o passado escolar para que se reavalie o processo e se construa uma nova caminhada em termos educacionais.
Quanto aos aspectos culturais que envolvem o processo de ensino de L2, sugere-se que o profissional os explicite para o aluno surdo. Tais aspectos, que subjazem o texto, interferem no seu significado e passam desapercebidos pelo aluno de L2. A reflexão sobre as culturas em que os sistemas lingüísticos estão imersos contribui para a conscientização das diferenças que se refletem, muitas vezes, em idiossincrasias do léxico.
Para finalizar, torna-se relevante alertar aos profissionais que o processo de aquisição/aprendizagem do português por surdos deve estar inserido em uma proposta educacional mais abrangente. Quanto ao espaço atribuído ao ensino do português, a escola deve se preocupar em ter profissionais altamente especializados no ensino de L2. Esse profissional deve conhecer os mecanismos de aquisição da linguagem para compreender as hipóteses dos alunos quanto ao português - sua L2 - para, a partir disso, interferir no processo de forma adequada. Vale destacar que qualquer processo educacional se concretiza mediante a interação efetiva do professor com o aluno. Se o professor não se comunicar com o seu aluno utilizando a língua de sinais, o processo estará completamente comprometido. Uma proposta educacional para surdos deve ser reconstruída permanentemente para que venha atender aos interesses dos alunos e extrapolar a questão das línguas.
1. 1 | a aquisição da linguagem que deve ser garantida através de uma língua |
2. 2 | a alfabetização que deve acontecer naturalmente através da escrita das |
3. 3 | a aquisição/aprendizagem do português que envolve um processo de |
Neste artigo, objetivou-se diferenciar três processos relacionados com as línguas no contexto educacional dos surdos: espaço-visual, isto é, uma língua de sinais (no caso do Brasil, a LIBRAS); línguas de sinais; aquisição de L2.
Tais processos apresentam uma questão em comum: a faculdade da linguagem. No entanto, cada processo é, de certa forma, independente um do outro. A aquisição da linguagem é essencial ao ser humano, portanto as crianças surdas precisam entrar em contato com uma língua espacial-visual para ter garantida essa essência da linguagem. Quanto a alfabetização, parece que as crianças surdas alfabetizam-se naturalmente quando em contato com o sistema escrito das línguas de sinais. Por outro lado, o processo de aquisição/aprendizagem do português não é essencial, mas é necessário na sociedade brasileira; assim sendo, os alunos surdos precisam adquirir o português escrito.
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i[i] Doutoranda do Departamento de Pós-Graduação em Letras da PUCRS - área de concentração: Lingüística Aplicada - com o suporte financeiro da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Oi, qnd vc escreveu este artigo??? estou usando ele como base no meu tcc.
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